O livro que inspirou "Meia-noite em Paris" de Woody Allen.
A autobiografia de Alice B. Toklas é um dos mais preciosos documentos sobre as origens e sobre os criadores da arte e da literatura moderna. Os elogios não são poucos frente ao cenário grandioso da obra – a Paris do início do século XX – e à sala de visitas de Gertrude Stein, o lendário número 27 da Rue de Fleurus, onde reunia amigos como Picasso, Matisse, Hemingway, Jean Cocteau e Scott Fitzgerald, todos ainda jovens e desconhecidos, em informais reuniões e freqüentes festas. Seus convidados podiam também admirar uma das maiores coleções de arte do século passado, que incluía o retrato da anfitriã pintado por Picasso.
Como se não bastasse, a autora ainda construiu sua própria biografia da maneira mais engenhosa possível. A narradora do livro é Alice, companheira de Gertrude Stein durante toda a vida, o que lhe permitiu falar de si própria em terceira pessoa e claro, tecer elogios a si mesma sem falsa modéstia. A escritora sabia da importância da sua obra e de seu círculo de relações. É atribuída a ela a expressão lost generation (geração perdida), que classificava um grupo de escritores americanos – como Ezra Pound, T. S. Eliot, Hemingway e Fitzgerald – que viveram na Europa entre a Primeira Guerra Mundial e a Crise de 29.
A autobiografia de Alice B. Toklas é o livro mais conhecido de Stein, que já em sua primeira obra, Three Lives, demonstrou toda a força da sua narrativa, o estilo próprio e a criatividade da sua escrita em língua inglesa.
Gertrude Stein (1874-1946), judia, nascida e educada nos Estados Unidos, adotou a França como modo de vida. Além de escritora, foi colecionadora e impulsionadora de arte, feminista e, a principal de suas características, a vanguarda em pessoa.
Leia a seguir o texto de apresentação do escritor Paulo Hecker Filho para A autobiografia de Alice B. Toklas, editado pela L&PM na década de 80.
La Stein
Prepare-se o leitor para conferir, pois ela não faz por menos: “Einstein foi a mente filosófica criativa do século e eu fui a mente literária criativa do século.”
Einstein, filósofo? Suas observações, com a universalidade que se espera da filosofia, são antes banais, mas para a Stein, o termo tem a verdade que ela procura dar a cada palavra sua, pois de fato ele pensou a realidade de perto, no íntimo, foi O Físico. E ela também pensa no íntimo o real em sua transposição literária. Outros contemporâneos se aproximam disso, é um ideal da época, Cela e Goytisolo, Joyce, Joyce Cary e Isherwood, Anderson, Hemingway e Singer, Vittorini, Clarice Lispector... Só que ela fez método dessa tentativa de intimidade, enquanto os demais, mesmo criativos como os citados, ainda respeitam largamente as formas tradicionais dos gêneros.
Ler a Stein é comprovar como a regra é obedecer às convenções formais, ou seja, em boa parte repetir. Lê-la, assim, corresponde a uma repristinação, um começar do início do real e literário, de nós mesmos; somos muito mais a sua frase do que um soneto de Bilac, por lindo que esse possa ser. De saída, não é fácil, mas em seguida a gente se habitua e é tônico como nada, pois no fundo ela quer mais verdade da literatura e portanto da vida. Não admira que tenha influenciado uma das grandes literaturas do mundo que é a norte-americana, nem que tenha marcado quem a conheceu, praticamente a vanguarda das letras e das artes plásticas reunida em Paris.
O leitor com preguiça ou acadêmico pode torcer o nariz, achando que é mais um primitivismo. Mas quem se disponha a entendê-la vê logo que ela está por dentro das coisas, toda sensibilidade e inteligência. Se isso é primitivismo, salve ele: nos reabre o mundo. Nem sempre ela acerta, vá, pois tudo o que se faz método corre o risco de eventualmente se mecanizar ou esvaziar. Mas no conjunto da obra, ou nesta admirável Autobiografia de Alice B. Toklas, posta em português sem perder a eficácia pelo experiente tradutor que é Milton Persson, dá um exemplo pleno da noção de escrever que descobriu e adorou numa coerência sem falhas. Para isso é preciso uma grande personalidade, La Stein. Se não a mente literária mais criativa do século, Uma Mente.
Paulo Hecker Filho
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