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A desigualdade entre os homens segundo Rousseau: um dos monumentos da inteligência humana de todos os tempo

24/06/2009

- Por João Carlos Brum Torres

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens é referência fundamental para o estudo da filosofia e da história política. Escrito pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau em 1755, o ensaio denuncia as disparidades econômicas, sociais e políticas existentes entre os homens a partir da identificação da origem da desigualdade.

Esta obra nasceu da perplexidade e do fascínio de Rousseau ao se deparar com a questão proposta pelo concurso da Academia de Dijon sobre a fonte da desigualdade humana. Na época em que foi publicado, seu estudo crítico exerceu grande influência sobre o pensamento cultural e político e inspirou os líderes da Revolução Francesa com seu entusiasmo e com a defesa apaixonada de seus ideais

Leia o artigo de João Carlos Brum Torres – professor, doutor em Ciência Política e autor do livro Transcendentalismo e Dialética (L&PM, 2005) – sobre o Discurso:

No balanço autobiográfico das Confissões, Rousseau relata que, em 1753, ao tomar conhecimento do programa lançado pela Academia de Dijon propondo um prêmio a quem melhor respondesse à questão sobre "qual a fonte da desigualdade entre homens e se ela é autorizada pela lei natural"¹, sentiu-se perplexo, tocado pela grandeza da questão, bem como pela ousadia da instituição que publicamente a lançara. E imediatamente acrescentou: "mas já que ela tivera essa coragem, eu bem podia ter a de discuti-la, e pus-me à obra"². Foi dessa disposição que resultou sem tardança a redação do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, conhecido como o Segundo discurso o qual, concluído em junho de 1754, foi publicado no ano seguinte, por Marc-Michel Rey, livreiro e editor em Amsterdã.

A despeito de que o ensaio não tenha ganho o prêmio e que as atas da Academia de Dijon registrem que ele nem mesmo teve "sua leitura concluída em razão de sua extensão e de sua má tradição",4 não há risco de exagero em afirmar que esta foi e é uma obra de importância histórica absolutamente maior, decisivamente conformadora do imaginário social moderno, referência fundamental da cultura política em que até hoje vivemos.

Com essa declaração não se faz referência a fatos como o registrado por Claude Lévi-Strauss, para o qual Rousseau "foi o criador da etnologia (...) ciência que ele concebeu, cuja existência desejou e que anunciou um bom século antes que ela fizesse sua aparição no mundo".5 Nem propriamente a avaliações como a de Cassirer de que "a doutrina de Rousseau não é objeto de mera curiosidade acadêmica", sendo antes "um meio inteiramente contemporâneo de considerar problemas", de sorte que "seu conteúdo não perdeu nada de sua atualidade."6

Na verdade, ao afirmarmos a importância absolutamente ímpar do Ensaio temos em vista fenômenos ideológicos de uma outra profundidade, relacionados com o papel central cumprido por esta obra com relação às duas grandes matrizes do pensamento cultural e político que vieram a constituir a dimensão crítica da época moderna. A primeira dessas matrizes é a da denúncia das desigualdades econômicas, sociais e políticas existentes entre os homens, as quais, a partir das análises apresentadas no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, passaram a ser explicadas em função da problemática instituição da propriedade privada. A segunda é a antecipação do que viria a ser o pensamento crítico sobre a própria idéia de civilização, cuja expressão mais clara só viria a se consolidar bem mais tarde, quando já avançado o século XX, e que se consubstanciaria na idéia de que os progressos alcançados pelos homens ao longo do tempo, a própria civilização, por assim dizer, em si mesma e na sua dimensão mais íntima, é malignamente ambígua, portadora de uma dimensão destrutiva, que a faz perigosa e sempre virtualmente perversa.

O reconhecimento do papel decisivo do Segundo discurso e, em geral, da obra rousseauniana, na conformação do imaginário crítico da modernidade pode ser expresso mais diretamente se dissermos que Rousseau é o fundador das duas principais linhagens do pensamento crítico, que caracterizam essa época histórica. Com relação à primeira delas, basta notar a óbvia vinculação do igualitarismo moral do Segundo discurso à tradição socialista, a Babeuf,7 a Proudhon8 e ao dito socialismo científico de Marx e seus herdeiros. No segundo caso, é preciso ver que o elogio da natureza e a denúncia da queda moral provocada pelo surgimento da civilização – feitas tanto no texto aqui comentado, quanto no Discurso sobre as ciências e as artes – é a peça de abertura da tradição na qual se enquadram tanto a sombria meditação heideggeriana sobre a técnica, quanto a crítica da Escola de Frankfurt ao Iluminismo e à idéia de dominação que lhe seria inerente. Neste caso, a tese fundamental é a de que o desenvolvimento das capacidades e dos poderes técnicos inerentes à civilização se encontra na origem de um irremediável conflito entre o homem e a natureza, cujos resultados são profundamente danosos a ambos.

É claro que o reconhecimento desses antecedentes conceituais e doutrinários não implica que os pensadores que, sucedendo a Rousseau, constituíram essas duas grandes tradições do pensamento crítico se tenham limitado a repetir-lhe as análises, ou que sequer concordem com as posições de Rousseau. Na verdade, não se pode dizer nem mesmo que suas respectivas obras tenham expressamente reconhecido o legado rousseauniano, pois o que vemos no mais das vezes é antes a simples continuidade de uma mesma ordem de preocupações e de uma inspiração crítica que se mantém reconhecível a despeito das muitas modulações. No caso do marxismo, aliás, isto é bem típico, pois não obstante Engels, depois de citar longamente o Segundo discurso, tenha podido dizer que ali "encontramos não só uma linha de pensamento à que corresponde exatamente a desenvolvida em O capital, mas também toda uma série de giros dialéticos de que se vale Marx: processos por natureza antagônicos, prenhes de contradições, contendo a transmutação de um extremo em seu contrário e, finalmente, o ponto nevrálgico de toda a questão, a negação da negação"9, a verdade é que as manifestações expressas de Marx sobre Rousseau são, no mais das vezes, sarcásticos reproches ao caráter abstrato de sua crítica à sociedade capitalista e ao que há de parcial e ilusório no programa de emancipação simplesmente política apresentado no Contrato social10. Do mesmo modo, é quase impossível encontrar entre os autores da Escola de Frankfurt, ou na obra heideggeriana, mais do que escassíssimas menções ao nome de Rousseau.Todavia, a despeito da falta de reconhecimento, a verdade é que Rousseau ocupa uma posição fundadora dentro da tradição de pensamento em que os pensadores recém aludidos se enquadram, admitam e queiram eles isso ou não.11

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Pode-se dizer que os atos instituidores do que viria a ser o pensamento socialista, Rousseau os perfaz principalmente na segunda parte do Discurso, quando aprofunda a análise sobre as origens do que ali é designado como desigualdade moral, expressão que manifestamente abrange aspectos econômico-sociais, jurídicos e institucionais das diferenciações existentes entre os homens.

O procedimento analítico adotado no Discurso é então o de uma cuidadosa reconstituição genealógica, feita, como diz Rousseau expressamente, à distância da série de fatos históricos positivos, mas atenta à seqüência lógica das mudanças pelas quais, em tempos e lugares diversos, os homens necessariamente passaram durante o período de progresso histórico e avanço civilizacional. O que mais ressalta no desdobramento dessa operação reconstrutiva é que tais avanços e progressos estiveram sempre inextricavelmente associados ao agravamento da monstruosa desfiguração da vida social que é a desigualdade. E esta última – entendida, como já mencionado, como desigualdade econômica, social e jurídica – é geneticamente explicada pela instituição da propriedade privada, a qual é atribuída, convém repetir, o papel determinante na constituição da história humana como um processo ao mesmo tempo materialmente exitoso e moralmente catastrófico. A frase de abertura da segunda parte do Discurso diz, com efeito, o seguinte:

O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Não escutem a esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém". (p. 80)

As causas, pois, de incontáveis crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores que desfiguram a vida em sociedade tal como a conhecemos, se encontra, diz-nos o texto, nessa instituição perigosa e letal.

Para bem avaliar o conteúdo e a importância dessa tese é preciso ter bem presente, no entanto, o estado em que, segundo Rousseau, se encontrava o homem em suas origens, antes que o progresso da civilização o tivesse precipitado nessa nova e perversa situação. A verdade, segundo a lição do Discurso, é que originalmente os homens eram iguais e viviam em uma situação de independência recíproca e ausência de conflitos, protegidos pela interação rara e escassa, que naturalmente os afastava dos sentimentos de autoconsideração, de estima ou desprezo pelos outros, assim como da distinção entre o meu e o teu. Em tal condição, nesse estado de natureza, explica-nos o Discurso, "não tendo (...) nenhuma espécie de relação moral nem deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus e não tinham nem vícios nem virtudes" (p. 68). Além disso, continua o texto, nesse estado primitivo o sentimento natural da piedade nos leva a "socorrer aqueles que vemos sofrer" e, assim, concorre "para a conservação mútua de toda a espécie", desse modo ocupando "o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz." (p. 72).

É, pois, esse estágio de inocência original que será rompido pela instituição da propriedade privada e da desigualdade moral, para usar a terminologia do Discurso, a qual fará com que a desigualdade natural de capacidades e talentos, insignificante no primitivo estado de natureza, passe a ter enormes conseqüências para a vida social dos homens. Convém notar, porém, que a análise de Rousseau é muito menos simples do que o esquemático resumo que dela estamos a fazer pode sugerir, eis que o Discurso enfatiza que "a idéia de propriedade (...) não se formou de repente no espírito humano" (p. 80), devendo ser vista antes como o resultado de uma evolução histórica lenta, cuja estrutura geral a segunda parte do Discurso cuidará justamente de pôr à luz.

Reconstituir pormenorizadamente as análises rousseaunianas nos levaria demasiado longe, mas podemos pelo menos registrar que, provido da capacidade de aperfeiçoar-se – capacidade de resto única dentre todas as espécies que constituem o reino animal –, o homem primeiro faz de paus e pedras as primeiras armas, depois, conforme às diferenças de terras e climas, faz da coleta e da caça as supridoras de alimentos, vestes e abrigos, assim como descobre o modo de dominar o fogo. Nesse período têm lugar também os primeiros processos de colaboração que ensejaram a formação da linguagem, a colaboração em empresas como a caça coletiva, a construção de casas e, ainda, no plano psicológico, o surgimento de novos sentimentos como o amor, do qual decorrerá forçosamente a criação de novas realidades sociais, como a constituição das famílias. No início dessas transformações tem-se o que Rousseau denomina A juventude do mundo, época em que os inegáveis progressos e melhoras alcançados com a superação do estágio animal da humanidade primitiva, lançam, por outro lado, os germens das perversões sociais do futuro.

A entrada firme na rota de perdição só veio a ter lugar, porém, posteriormente, quando, diz Rousseau, foram deixados para trás os "trabalhos que um só podia fazer e as artes que não precisavam do concurso de várias mãos" (p. 88) e "se percebeu que era útil a um só ter provisões para dois". Este passo desastroso e decisivo, do qual resultou a própria instituição da propriedade privada como condicionante e base da divisão social do trabalho, a humanidade o deu, diz Rousseau, quando foram inventadas as artes da agricultura e da metalurgia, uma vez que o desenvolvimento de ambas depende da interação e da cooperação entre os homens. A calamitosa conseqüência, diz o Discurso, é que "o ferro e o trigo que civilizaram os homens e (...) puseram a perder o gênero humano." (p. 89)

Com efeito, prossegue a análise, "do cultivo das terras, seguiu-se necessariamente a sua divisão; e da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça. Para dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possa ter alguma coisa." (p. 90-91) O verdadeiro desastre só veio a ocorrer, porém, quando, neste novo contexto moral e institucional, as desigualdades naturais entre os homens – as desigualdades de força, destreza, astúcia e inteligência – adquiriram conseqüências que no estágio anterior da história humana elas não podiam ter. Foi somente nesse novo estágio e sob essas novas condições que aqueles que a natureza melhor dotara passaram a tirar vantagem dessas diferenças até então insignificantes e passaram a acumular maiores riquezas e poderes, passando a dominar aos que, desprovidos desses acúmulos de bens, passaram a deles depender. Assinale-se que o resultado desse movimento foi, contudo, algo paradoxal, pois formou-se, assim, uma dependência mútua, eis que o rico passa então a ter necessidade do pobre, tanto quanto este encontra no rico o seu socorro. Em conseqüência, diz ainda o Discurso, é preciso que o rico procure incessantemente interessar aos pobres de modo a fazer com que estes "encontrem alguma vantagem, de fato ou aparentemente, em trabalhar para si próprio." (p. 92)

Aflito e inseguro com os inevitáveis e constantes antagonismos e confrontos decorrentes dessa nova situação, o rico, diz-nos Rousseau, concebeu então a argutíssima idéia de formação de um poder comum, cuja lógica era a de "empregar a seu favor as forças daqueles mesmos que o atacavam" (p. 95), de onde então surgiram as primeiras formações estatais, as quais embora alegadamente erguidas para defesa do interesse de todos, de fato estavam a serviço dos mais ricos e poderosos.

Ora, não precisamos continuar com a resenha das teses principais do Discurso para percebermos quão evidente é a continuidade que há entre essas análises rousseaunianas e o que viria a ser no futuro mais ou menos imediato a cultura e a tradição do moderno pensamento socialista e libertário. Isto quer dizer que não é preciso mais do que uma evocação curta de alguns dos principais motes e textos do Discurso para comprovar nossa afirmação inicial de que Rousseau ocupa uma posição fundadora com relação a primeira das vertentes críticas da cultura política moderna.

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Resta-nos, porém, a tarefa de mostrar que também com relação à segunda das tradições críticas da modernidade – a que insiste no caráter perverso do conflito entre homem e natureza trazido pela civilização enquanto tal – também encontra suas raízes no pensamento de Rousseau.

Um primeiro modo de comprovar esta segunda tese pode estar simplesmente no registro, por um lado, dos elogios que Rousseau faz ao estado de natureza, à sua concepção de que ele é um estado de auto-suficiência e inocência. A mesma idéia se encontra em suas críticas aos malefícios trazidos pelos avanços da civilização – seja os malefícios objetivos, como a competição entre os homens, a submissão de uns a outros, a exploração que vicia os processos de divisão social do trabalho e cooperação entre eles; seja os subjetivos, como os sentimentos do amor próprio, da inveja, do ciúme, da ânsia de poder, da cupidez, da dissimulação e da falsidade.

No entanto, é preciso enfatizar que Rousseau não alimenta o anelo de uma volta idílica à feliz situação de que partimos, parecendo-lhe vão todo desejo de retorno ao estado de natureza. É em uma passagem de outro dos escritos autobiográficos, de Rousseau, juiz de Jean-Jacques, que se encontra a formulação mais clara desse ponto:

Mas a natureza não retroage e não voltaremos aos tempos da inocência e da igualdade uma vez que deles nos tivermos afastado[...] Assim seu [de Rousseau] propósito não era o de reconduzir nem a povos populosos, nem aos grandes Estados à sua primitiva simplicidade, mas somente o de deter, se fosse possível, os progressos daqueles cuja diminuta dimensão e circunstâncias havia preservado de uma marcha igualmente rápida para a perfeição da sociedade e para a deterioração da espécie. Estas distinções precisavam ter sido feitas e não o foram. Obstinam-se em acusá-lo de querer destruir as ciências, as artes, os teatros, as academias e de novo mergulhar o universo na barbárie dos primeiros tempos, embora ele tenha, ao contrário, insistido na conservação das instituições existentes, sustentando que a destruição delas só faria retirar os paliativos, conservando os vícios, substituindo assim o banditismo à corrupção.12

Vê-se, assim, que a crítica de Rousseau aos malefícios da civilização, não estando comprometida com nenhum projeto de retorno ao estado de natureza, nada tem de utópica. Há nela, por certo, uma espécie de lamento, conjugado, porém, com o reconhecimento do que Derrida chama a lógica da suplência, isto é, a idéia de que a aceleração do mal encontra seu anteparo e sua compensação na própria história.13 O que é dizer, conforme o mesmo autor, que:

A história precipita a história, a sociedade corrompe a sociedade, mas o mal que as estraga tem também sua suplência natural: a história e a sociedade produzem sua própria resistência ao abismo.14

Não se tome, porém, a visão de que certos valores naturais são preservados por instrumentos institucionais que, por assim dizer, os protegem nem como um automatismo histórico, nem como uma renúncia a um ponto de vista normativo na apreciação dos negócios humanos. Muito ao contrário, Rousseau tem a construção desses remédios não apenas como dependente da decisão e da resoluta ação dos homens, mas, ademais, como constitutivamente instáveis, sujeitos a novas quedas e perversões. Assim, para dar um único exemplo, o contrato social e as leis – se forem realizados segundo as regras e exigências que os fazem rigorosamente um contrato verdadeiramente social e leis que autenticamente o sejam, e não, nos dois casos, suas freqüentes contrafações – podem sim reconstituir entre os homens um sucedâneo equivalente à igualdade natural. Mas o Estado que resulta do primeiro, e que é fonte e condição das segundas, encontra-se, porém, sujeito e ameaçado pela destruição, como, aliás, Rousseau expressamente adverte no capítulo XI do Livro III do Contrato social, intitulado, justamente, "Da morte do corpo político".

É  preciso entender, no entanto, que nem o reconhecimento da inelutabilidade da saída do estado de inocência original, nem a irreversibilidade desse processo, retiram da natureza, segundo Rousseau, a condição de referência permanente quer para a ação política dos homens, quer para o desdobramento de sua vida individual e afetiva. Neste sentido, a natureza e o natural são para Rousseau, indubitavelmente, o metro permanente com base no qual é sempre possível tomar a medida da correção e do extravio em que coletiva ou individualmente vivemos.

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Antes de terminar esta apresentação, convém ainda alertar ao leitor deste livro extraordinário que, como diz Jean Starobinski, renomado intérprete do Discurso, Rousseau o preludia solenemente15, eis que o apresenta precedido de uma dedicatória, de um prefácio e de um exórdio, cada qual provido de interesse próprio, mas que retardam a entrada no coração apaixonado e apaixonante do livro. Com efeito, a primeira faz o elogio à terra natal de Rousseau, a ali idealizada Genebra; o segundo apresenta a estrutura do ensaio e o método que será seguido; e por fim o exórdio ou intróito apresentará formalmente o enunciado do problema que será tratado. Este início, que parece ter sido tornado lento intencionalmente – ainda que não seja assim expressamente reconhecido –, parece, todavia, uma preparação bem adequada aos arrebatamentos que virão, às intensidades emocionais, literárias e conceituais que fizeram, que fazem e que farão deste ensaio um dos monumentos da inteligência humana em qualquer tempo.

Maio de 2008

1. O prêmio – intitulado Prêmio de Moral para o ano de 1753 – era de "uma medalha de ouro no valor de trinta pistolas", e "seria adjudicado a quem melhor resolvesse o problema seguinte: Qual é a fonte da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural." Cf. Rousseau, Oeuvres Complètes, III, Paris, Gallimard, 1964, p. 1300, nota à página 129 do mesmo volume.

2. V. Jean-Jacques Rousseau, As confissões, tradução de Rachel de Queiroz, Atena Editora, São Paulo, 1953, vol. 2, p. 178.

3. Segundo em relação ao primeiro: o Discurso sobre as ciências e as artes, de 1750, que Rousseau escrevera para um outro concurso, em que fora vitorioso, também promovido pela Academia de Dijon e que tivera como questão diretriz a que interrogava "Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para melhorar os costumes".

4. O prêmio foi atribuído a François Xavier Talbert, vigário geral de Lesear. V. J.-J. Rousseau, Obras I, tradução de Lourival Gomes Machado, Porto Alegre, 1958, p. 148. Cf. Jean Starobinski, Introdução ao Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, in Rousseau, Ouvres Complètes, III, p. XLII; também em Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau – A transparência e o obstáculo, Companhia das Letras, São Paulo, 1991, p. 288.

5. V. Claude Lévi-Strauss, Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme, tradução para o espanhol em Claude Lévi-Strauss, J. Derrida, M. Blanchot, L. Althusser, P. Hochart, M. Françon, M. Guéroult, J.C. Pariente, R. Colangelo, Presencia de Rousseau, Nueva Visión, Buenos Aires, 1972, p. 9.

4. V. A questão de Jean-Jacques Rousseau, in Célia Galvão Quirino e Maria Teresa Sadek R. de Souza, O pensamento político clássico – Maquiavel Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, TAQ, São Paulo, 1980, p. 380.

5. François Noël Babeuf (1760-1797), conhecido pelo nome de Gracchus Babeuf, foi um jornalista que participou da Revolução Francesa. Foi executado por seu papel na Conspiração dos Iguais. Embora os termos socialismo e comunismo não existissem na época em que viveu, eles foram usados posteriormente para descrever suas idéias.

6. Pierre-Joseph Proudhon (1809/1865) foi um publicista, economista, sociólogo e socialista françês, o primeiro a se dizer anarquista. Proudhon é célebre por sua famosa frase "a propriedade é um roubo".

7. François Noël Babeuf (1760-1797), conhecido pelo nome de Gracchus Babeuf, foi um jornalista que participou da Revolução Francesa. Foi executado por seu papel na Conspiração dos Iguais. Embora os termos socialismo e comunismo não existissem na época em que viveu, eles foram usados posteriormente para descrever suas idéias.

8. Pierre-Joseph Proudhon (1809/1865) foi um publicista, economista, sociólogo e socialista françês, o primeiro a se dizer anarquista. Proudhon é célebre por sua famosa frase "a propriedade é um roubo".

9. V. Anti-Dühring, in http://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/cap13.htm. (tradução modificada).

10. Cf. Galvano della Volpe, Rousseau e Marx, tradução para o espanhol publicada por Ediciones Martinez de Roca, Barcelona, 1969, p. 70 e passim. V. também Jean-Louis Lecercle, Rousseau et Marx, in R. A. Leigh (ed.) Rousseau after 200 years – Proceedings of the Cambridge Bicentennial Coloquium, Cambridge University Press, 1982, p. 67 e seg.

11. Um livro recente de Andrew Biro, intitulado ‘Desnaturalizando’ a política ecolológica: a alienação da natureza de Rousseau até a Escola de Frankfurt e além dela (Toronto UniversityPress, 2005), cuida justamente de explicitar os momentos principais dessa tradição.

12. V. J.-J. Rousseau, Rousseau juge de Jean-Jacques, in Oeuvres completes de J.J. Rousseau avec les notes de tous les commentateurs / nouv. éd. ornée de quarante-deux vignettes, gravées par nos plus habiles artistes, d’après les dessins de Devéria, Chez Dalibon Libraire, à Paris, MDCCCXXI, Dialogues, vol. XIX, tome II, p. 33-4, apud Gallica, http://visualiseur.bnf.fr/CadresFenetre?O=NUMM-205188&I=4&M=notice.

13. V. Jacques Derrida, Gramatologia, trad. de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, Editora Perspectiva, São Paulo, 1973, p. 218.

14. Id.; tradução ligeiramente modificada.

15. Op. cit., LII e 295.